E aí veio a pandemia e todos tivemos que trabalhar de casa. Mas para muitas das empresas, que sequer cogitavam permitir trabalho remoto em tempos saudáveis, a pandemia teve efeito disruptor imediato: da noite para o dia, ou quase isso, centenas de funcionários conectados tiveram que mimetizar em video calls as práticas do escritório físico, e aí veio o stress pelo excesso de meetings e ligações, e todos estão trabalhando muito mais do que antes.
“Depois que isso acabar, muitas empresas vão ter que lidar com suas percepções de como o trabalho deve ser feito, pois elas vão precisar mudar“, diz Jose Morales, Head de Global Field Operations da Atlassian (pronuncia-se Atlas-si-on), a empresa fundada em 2002 por dois jovens australianos, que está por trás das ferramentas de gestão de projetos, programação e colaboração mais conhecidas entre os programadores do mundo todo: Jira, Trello e Bitbucket, entre outras.
A própria Atlassian mudou sua rotina, diz Morales. “Somos por definição uma empresa altamente distribuída mas não necessariamente uma empresa altamente remota”. Mas a diferença entre ser remoto e ser distribuído tem um peso enorme na produtividade e é esse ponto que Morales sinaliza nessa entrevista, concedida à The Shift no meio do Summit anual – virtual, obviamente – realizado pela companhia na semana passada.
O grande problema, diz ele, é a diferença entre o trabalho síncrono e o assíncrono. “Muito do trabalho remoto é apenas replicar o que se faz no escritório. Você tem reuniões, tem que fazê-las em grupo. As calls do Zoom serviam para isso. Mas o futuro dos negócios é se tornar muito mais assíncrono, repensar as tarefas sem ter que necessariamente replicá-las na nova maneira de trabalhar“. Confira a conversa.
Disrupção é…
“Acho que vamos aprender muitas lições durante esta pandemia. Depois que sairmos dela, algumas práticas vão ficar. Vamos descobrir que algumas organizações podem trabalhar remotamente. Esta crise, eu acredito que, com certeza, tem tudo a ver com garantir que você tenha ferramentas que permitam que as pessoas trabalhem remotamente, ou você não conseguirá sobreviver neste mundo. Empresas que não tinham como se comunicar efetivamente sem falar ou de forma tradicional, estão percebendo que têm que ter ferramentas, como as que fazemos, como JIRA e Confluence, Bitbucket, Trello (crítico para muitos dos grupos não técnicos), e o Zoom e o Slack, por exemplo. Você não pode se comunicar sem elas.
Eu me pergunto, no caso dos eventos, uma vez que as pessoas possam viajar novamente, se ainda haverá vontade de voltar a isso. Eu estava em um evento online de uma empresa de software, e ele tinha todos esses 15 executivos sênior realmente bons de diferentes empresas que dedicaram seu tempo para falar ao telefone com um thought leader, o que foi muito legal. Mas eu estava pensando, ‘Deus, em dias normais seria muito difícil conseguir que essas pessoas entrassem’. Mas como as pessoas não podem viajar, hoje há uma abertura total.
Então, a grande questão é, uma vez que você possa viajar novamente, isso vai mudar a maneira como as pessoas se encontram? Ou será que eles vão dizer: “Sabe de uma coisa, isso funciona tão bem que eu quero fazer isso para sempre”. Eu digo que isso vai mudar as coisas.
Tem sido uma experiência muito interessante. Nós somos, por definição, uma empresa altamente distribuída – temos pessoas na Austrália, em São Francisco, em Austin, Amsterdã – mas não necessariamente uma empresa altamente remota. É muito diferente quando você vê a Autonomic como um exemplo, ou mesmo a Trello. Todo mundo na Trello praticamente trabalhou de casa, o que é diferente de ser necessariamente distribuído. Nós nos tornamos cada vez mais remotos ao longo do tempo. E o que descobrimos é que as ferramentas que usamos hoje – nossas ferramentas e as ferramentas que usamos, como o zoom – nos ajudam a continuar nosso trabalho do dia-a-dia como se nada tivesse mudado.
O que estamos aprendendo, porque usamos a tecnologia para quase tudo, é que a crise nos impactou no sentido de que não conseguimos ver as pessoas que queremos ver pessoalmente, mas não em termos da maneira como trabalhamos. E o que estamos realmente aprendendo, nós diretamente mais do que nossos clientes, é que cada vez mais nossas organizações dentro da empresa podem realmente fazer coisas remotas que você costumava pensar que não poderiam ser remotas. Estamos descobrindo que elas podem ser remotas e está funcionando e está tudo bem.
Depois que isso acabar, muitas empresas vão ter que lidar com suas percepções de como o trabalho deve ser feito, pois elas vão precisar mudar. E eu acho que é isso que vai ser realmente fantástico.
Eu estava em uma ligação com o CEO de uma empresa que fabrica acessórios para tubos de gás. E foi muito interessante ouvir as pessoas que vieram de indústrias muito tradicionais. Eles falavam sobre como eles perceberam agora que tinham que mudar e que tinham que ensinar a todos como trabalhar remotamente, como fazer as coisas no exterior, e isso pode durar meses. Então, idealmente, ao final da pandemia, vai mudar a maneira como muitas empresas trabalham, ou a percepção de onde você precisa estar para trabalhar. Acho que as empresas que já adotaram muitas de nossas metodologias e muitas de nossas ferramentas vão ficar bem, não terão tanto desafio.
Acho que as empresas que têm confiado em tecnologias mais antigas vão querer adotar cada vez mais as tecnologias de nuvem.
Imagine uma empresa com um data center. Você tem que ter funcionários fisicamente lá para manter tudo funcionando. Se todo o seu ambiente é software como serviço ou mesmo está na Amazon ou no Azure, você poderia continuar de casa. Um cara de TI pode fornecer servidores, pode comprar um serviço SaaS e integrá-lo com outros serviços SaaS, e só precisa do seu computador. Ou pode comprar software, baixá-lo, movê-lo para a Amazon, provisionar servidores, a partir do conforto de sua casa. Mas se você fosse dono de seu próprio data center, você teria que ter essas pessoas lá. E se você tiver a maioria do seu pessoal em casa, eles teriam que esperar até que pudessem voltar para fazer mudanças físicas, fazer upgrades, fazer manutenção. Eu realmente acho que mais empresas vão tentar chegar mais rápido à infraestrutura da nuvem.
Sou um desenvolvedor de software, então acredito que tudo pode ser resolvido com software. Não há quase nada que não possa ser resolvido dessa forma. No final das contas, tudo se resume a ter o software certo.
Há muitas verticais econômicas tradicionais que têm empresas realmente adiantadas. Sempre me surpreende o quanto alguns varejistas são bons em digital, e até varejistas físicos, e é por isso que eles vão ganhar a longo prazo contra os que não são. Por exemplo, nós somos muito fortes nos bancos, somos muito fortes em qualquer uma das indústrias automotivas, somos muito fortes em algumas partes do governo. Em indústrias muito movidas por software e tecnologia. Temos boa presença em petróleo e gás, mas tem sido mais lento, porque a inovação deles tem se concentrado muito mais naquela porção física do negócio, a extração. E por isso, não são necessariamente ágeis. Muitos não estão usando processos ágeis ou ferramentas ágeis. Eu acho que quem vai ganhar nessas indústrias são os que adotam estratégias ágeis e boas tecnologias.
Há algo a que eu quero retomar, a diferença entre remoto e distribuído. Pense em uma empresa em São Paulo que tem 50 pessoas, por exemplo, que trabalham remotamente. Eles podem trabalhar remotamente juntos, porque estão no mesmo fuso horário, certo? Bem, o próximo nível de trabalho distribuído é aonde você está ao redor do mundo.
Muito do trabalho remoto é apenas replicar o que você faz no escritório. Você tem a reunião; você tem que ir e fazê-la em grupo. Temos visto muitas ligações do Zoom, certo? Tem a ver com tentar ajudar a fazer um trabalho síncrono, trabalhar juntos ou fazer coisas juntos. Mas o futuro desses negócios está na forma como eles se tornam muito mais assíncronos. Então você trabalha quando funciona para você, e você é capaz de pegar uma tarefa, trabalhar o máximo que puder, e entregá-la a alguém que vai executar a tarefa em um fuso horário diferente ou em um turno diferente. O que vai ser interessante sobre a próxima fase do trabalho virtual é como repensar todas as tarefas a que nos acostumamos em um escritório, já que não temos necessariamente que replicá-las na nova maneira de trabalhar.
O que vamos ver no futuro é que vamos fazer as coisas de maneiras diferentes para que você possa fazer isso de forma assíncrona.
Acho que todas as nossas ferramentas foram muito precoces nas tecnologias sociais. Nós fomos alguns dos primeiros softwares corporativos a trazer as pessoas para a conversa. O Confluence é um grande exemplo. Você pode fazer um monte de trabalho em app, mencionar pessoas e depois elas são notificadas e podem entrar e comentar sobre suas menções ou comentar na página que você escreveu. E elas não precisam estar exatamente no mesmo horário em que você está. Então, ao longo de 24 horas, você consegue ter uma conversa proveitosa com as pessoas sem realmente ter que fazer um telefonema ou um Zoom.
O Zoom obviamente só funciona se você estiver conversando no mesmo horário. Eu não posso falar com você, sair andando por três minutos, e você responde e depois volta. Isso não funciona.
Quando entrei para a Atlassian, 10 anos atrás, eu estava gerenciando o desenvolvimento corporativo, comprando empresas. E ficamos interessados em chat. (Não estamos mais nisso, vendemos nosso negócio para a Slack). Mas me lembro de ter descoberto um produto chamado HipChat, que era um produto legal. E eu disse: “bem, quem o usa?“. E foi engraçado, porque era basicamente esse grupo de engenheiros que eu podia ver da minha mesa.
Essas pessoas nunca falavam umas com as outras. Eles tinham os fones de ouvido ligados, eles estavam trabalhando, eles nunca conversavam. Mas então, eles me convidaram para entrar em suas salas de HipChat e a conversa foi tão rica, porque eles estavam á como engenheiros. Apesar de estarem conversando, eles estavam fazendo isso de forma assíncrona, porque não queriam interromper alguém que estava codificando. Então eles postavam um trecho de código que eles queriam compartilhar ou um vídeo de gato. Não importa o que era. E os engenheiros retomavam um horário diferente, e você pegava a conversa. Mesmo estando um ao lado do outro, eles estavam trabalhando de forma assíncrona.
E é por isso que, quando se trata de desenvolvimento de software ou de equipes de software ou muito técnicas, quando todos nós fomos para casa, isso mudou apenas o local de trabalho. Não necessariamente mudou a forma como trabalhávamos, porque já estávamos fazendo isso. Mesmo que você perca a informalidade e o papo com as pessoas, você continua trabalhando. A maneira como trabalhamos não mudou.
Este é o desafio para as empresas que trabalham com a reunião da manhã onde todos dizem o que fazer e depois fazem follow up no meio do dia. Ou, se exigem conversa em tempo real se você a qualquer momento tiver uma dúvida. Isso é difícil de replicar no ambiente remoto.
Uma das coisas que acreditamos é que todas as nossas ferramentas são abertas por padrão. Confluence é um exemplo. Se eu escrever uma página, todos na empresa podem vê-la. Se você me seguir, você pode vê-la. É a nossa estrutura para tomar decisões. E você pode ir lá embaixo e ver toda a justificativa. E se as pessoas quiserem entender porque estamos fazendo algo, elas podem procurar por isso. É sobre compartilhar e é realmente sobre transparência de informação e isso, principalmente para nós, é o Confluence. É realmente onde documentamos tudo, desde decisões a planos para eventos, até o que quer que seja central para nossa cultura na Atlassian.
A forma como nos certificamos de que todos estão na mesma página é estar abertos, porque quanto mais você guarda as decisões para si, é mais difícil para o resto da empresa se sentir investido nessa decisão. Tentamos fazer com que tudo seja compartilhado o máximo possível.
Tentamos estender isso aos nossos clientes. Tentamos ser o mais transparentes possível com eles sobre o que planejamos fazer e o que estamos fazendo. Nossa cultura é em parte sobre compartilhar informações com nossos clientes, tornar mais fácil encontrar e descobrir informações, facilitar a participação nas decisões ou entender porque as decisões foram tomadas. O cliente é central para nós e tudo o que fazemos é ouvir os clientes e obter feedback dos clientes. A forma como ajudamos os clientes é permitir que as equipes reajam mais rapidamente às suas necessidades. Ao descobrirmos que eles têm certos problemas, vamos colocar isso como um requisito para que possamos ajudar a resolver. E pensamos através de processos ágeis, executando sprints, o que fará com que o produto chegue mais rápido.
E isso abre mais uma conversa. No mundo moderno, você precisa dar aos seus funcionários as ferramentas de que eles precisam para serem bem sucedidos.
Eu não conheço muitas empresas que são construídas com sucesso, e especialmente em áreas hiper competitivas, sem ter engajado os funcionários. Dar a eles as ferramentas para serem bem sucedidos é fundamental. Você vai contratar funcionários melhores, tendo melhores ferramentas.
Quando a cultura é transparente e usa metodologias ágeis no trabalho, fica muito claro quem não está entregando o que deveria. Eu diria que a transparência expõe o bom e o ruim. É difícil esconder algo em um mundo muito transparente, porque você sabe o que as pessoas estão entregando, você pode ver qual é o SLA delas, se há tickets de resposta, você pode ver quanto código elas produziram. Está bem ali para as pessoas verem. Em muitas empresas como a nossa, é mais difícil esconder agora do que costumava ser, mesmo que você não esteja fisicamente lá. Porque nós sabemos o que pedimos para ser feito. E se você não entrega, então fica bem à vista.
Quando começamos, estávamos no início da consumerização do software corporativo. Decidimos que nossas ferramentas não seriam as que as pessoas comprariam por causa de uma decisão topo down. A subversão seria eles usarem uma versão open source.
Então o que nós fizemos foi aproveitar a parte do modelo open source e fornecemos às pessoas melhores ferramentas que eram mais fáceis de serem usadas. Não foi necessário um grande compromisso de serviços. E a adesão era de $800 para usuários ilimitados quando começamos. Tornamos mais fácil para eles começarem, foi a ferramenta que eles queriam usar e isso ajudou imensamente. Criamos clientes apaixonados por causa disso e por construir ferramentas muito poderosas. Eu lembro que anos atrás (você pode ver em vídeo) alguém controlou um forno elétrico com o JIRA. O perigo do JIRA é que ele pode fazer qualquer coisa, ele é excepcionalmente poderoso. Eu acho que as pessoas adoram esse ponto.
A maioria das pessoas que você vai contratar nas áreas de TI ou áreas de programação tem experiência com nossos produtos, sabem como eles funcionam. Para quase toda ferramenta que você quer usar com o JIRA, que você quer integrar, há uma integração disponível. Quando uma nova empresa começa a usar nosso produto ligamos para saber porque nos escolhe. Você espera ouvir “Eu vi essa campanha de marketing“. Mas a resposta geralmente é “não, eu usei na minha última empresa“. É o poder do word of mouth.
As pessoas me perguntam “Quando você decidiu entrar no mercado brasileiro?“. E eu digo, “bem, nós decidimos quando as pessoas no Brasil tinham conexões de internet e cartões de crédito. Os brasileiros vieram até nós“. É por isso que estamos tão distribuídos pelo mundo. São milhares de empresas, de pequeno a grande portes. Temos alguns dos maiores bancos do Brasil como usuários. E grandes empresas do varejo. O Brasil tem sido um dos primeiros a adotar o SaaS, nossas soluções e o SaaS em geral. Trello é massivo, temos usuários apaixonados no Brasil. O país é um grande pedaço do nosso negócio na América Latina, obviamente, e um grande negócio em crescimento para nós em nível global.
A transformação digital exige ferramentas, cultura e práticas. Você precisa de todas essas três coisas. Eu acho que há muitas empresas que ainda compram nossas ferramentas e acham que isso é o suficiente. Mas se você não tem a prática ser aberto, se você não tem a cultura da conexão, é difícil ter sucesso.
Nós construímos nossos valores anos atrás, logo quando começamos. Mike Cannon-Brookes e Scott Farquhar diziam: “Para que tipo de empresa queremos trabalhar?“. Eles tinham 23, 22 anos de idade quando começaram. Bem lá atrás, eles costumavam dizer: “não f… a empresa” e diziam a palavra inteira. E o que é realmente engraçado é que no nosso primeiro escritório, quando eu comecei a ir para a Austrália, logo atrás da mesa na entrada, estava escrito “Não f… o Cliente“. Mas então as pessoas começaram a ter filhos e elas os levavam para o escritório e diziam: “Talvez seja melhor tirar isso e colocar Não #@!% o cliente“.
Então valores e cultura para nós são diferentes. A cultura vai mudar à medida que você for ficando maior, mais distribuído, com mais instalações. Mas os valores centrais continuam os mesmos, sabe? Perguntas como “estamos realmente pensando no cliente nos movimentos que estamos fazendo?“. E também a ideia de team play. Não queremos que as pessoas sejam gênios solitários. Você está lá, você passa muito tempo trabalhando, você também deveria gostar de seus colegas. É muito importante para nós.
Há outra, “seja essa mudança que você procura“, é realmente importante. Tipo, tente não aparecer com um problema, tente aparecer com uma sugestão de como resolver um problema. Esses valores informam a nossa cultura e são realmente importantes.
Fonte: The Shift