Além do sucesso, os 20 unicórnios brasileiros compartilham filosofias e características bem semelhantes
Por Nelson Vasconcelos
Parece que foi ontem, mas já se vão quase três anos desde que o 99, aplicativo de transporte concorrente do multinacional Uber, apresentou-se como o primeiro unicórnio legitimamente brasileiro. Essa denominação curiosa indicava que a startup, criada em 2012, alcançara o patamar de US$ 1 bilhão em valor de mercado. Na época, foi um fenômeno. Segundo a Associação Brasileira de Startups (Abstartups), hoje são 20 unicórnios no país, encarnados em nomes como Nubank, iFood, Loggi e Quinto Andar, entre outros, apps cada vez mais conhecidos do público. Além do sucesso, todos compartilham filosofias bem semelhantes, o que permite delinear traços comuns aos unicórnios tropicais.
São vistas como guerreiras que teimam em nadar contra a maré, pois o país não é exatamente um paraíso para os empreendedores digitais. Por isso são animadores para o setor os números e as estatísticas que estão surgindo a respeito das nossas startups – definidas como “empresas de tecnologia inovadoras e com capacidade alta de crescimento” por Felipe Matos, presidente da Abstartups.
Quem lidera a corrida entre os unicórnios brasileiros é o Nubank, um banco sem agências físicas, avaliado por várias fontes especializadas (como o site CBInsights) em nada menos que US$ 30 bilhões. Seus próprios executivos não comentam tais avaliações para evitar precipitações ou embaraços legais.
Quando as empresas não têm papéis em bolsa, os analistas calculam o valor das startups a partir do que é divulgado após as rodadas de investimentos que elas recebem. Algumas abrem os dados com facilidade, mas nem todas, justificando o silêncio como “estratégia de mercado”.
A cifra é espantosa em qualquer ramo de negócios, ainda mais quando se trata de uma fintech – instituição financeira que viabiliza suas operações através de aplicativos, quase sem intervenção humana. Driblando um certo ceticismo dos analistas mais conservadores, o banco arregimentou 40 milhões de clientes com apenas oito anos de operação numa arena plena em brigas de cachorro grande.
No ambiente competitivo do setor financeiro, que exige credibilidade, inovação e potencial de crescimento como pré-requisitos, o que faz a diferença é o uso de conceitos antigos como inteligência, criatividade e persistência. Se, no fim das contas, uma fintech quebrar alguns paradigmas e crescer em velocidade acelerada, tanto melhor.
Foi esse o caso do Nubank. Cortando parte das taxas pagas pelos clientes, ganhou nichos inexplorados e seguidores fiéis. “Queremos mostrar que não existem indústrias intocadas no Brasil, onde os empresários não podem participar, e [mostrar] também que o país tem muito potencial de inovação e disrupção”, afirma Cristina Junqueira, cofundadora do Nubank. “O desafio principal é crescer sem deixar de lado o que nos trouxe aqui, que é democratizar o acesso ao sistema financeiro por meio de produtos e serviços com base numa linguagem simples, transparente e sem burocracia.”
Cuidar do crescimento do ecossistema não deixa de ser uma jogada estratégica. Tradicionalmente, os desbravadores de uma trilha costumam carregar consigo boa parte dos ganhos do seu mercado, como se pode ver pela história da Amazon. Para o empreendedor, ramificar sua presença é uma boa maneira de atingir objetivos.
“Gosto de olhar para o que melhor conseguimos fazer: nós democratizamos a nossa malha logística”, afirma Rafael Mandelbaum, VP de Operações da Loggi, unicórnio desde 2019. Seu sistema ajudou a manter as operações de milhares de empreendimentos durante o distanciamento social em 2020, multiplicando sua força, estimada hoje em US$ 2 bilhões. “O avanço do e-commerce acelerou o processo de digitalização de muitos empreendedores e empresas de pequeno porte, oxigenando o setor.”
Nessa teia tecnológica, é bom ter em mente que o comércio eletrônico não existe sem empresas como a Vtex, unicórnio de US$ 4,33 bilhões e receita de US$ 99 milhões em 2020. Sua tarefa primordial é manter a gigantesca estrutura que permite vendas on-line de qualquer segmento – desde o cadastro de produtos até a integração de meios de pagamento, cálculo de fretes e por aí afora. “A evolução dos nossos produtos é baseada nas experiências que adquirimos com nossos clientes, e os investimentos são uma consequência desse trabalho”, diz Rafa Forte, presidente da Vtex Brasil, que abriu capital na bolsa de Nova York em julho passado e conta com clientes em 32 países.
A ordem entre os unicórnios é manter o pé no acelerador para aproveitar os bons ventos de um setor que se expandiu em meio ao cenário devastador da pandemia. “Estamos vivendo um boom de investimentos, com grandes rodadas tornando-se cada vez mais comuns e novos fundos para o Brasil sendo criados pelo capital estrangeiro. Isso era raro”, afirma Felipe Matos, presidente da Associação Brasileira de Startups. “E a curva está acelerando. Nos primeiros sete meses deste ano recebemos mais de US$ 6 bilhões em investimentos em startups, que foi praticamente o total obtido em 2020 e quase o triplo de 2019.”
“Com taxa de juros crescendo, o apetite ao risco diminui. Se o investidor tiver retorno maior com renda fixa sem riscos, é óbvio que ele vai alocar o dinheiro dele nesse tipo de investimento. E startup é negócio de risco”, diz João Kepler, da Bossanova, que hoje investe em nada menos que 840 empresas iniciantes e tornou-se referência de venture capital no país.
“O horizonte será de nuvens carregadas se não tivermos baixa na taxa de juros e se a inflação global não afetar a gente”, diz Amure Pinho, da Investidores.vc. “Outra questão é que já estamos quase em ano de eleição, com chance real de dar uma bagunçada.”
O alerta vale para todos. Mas os unicórnios se dizem atentos, cada qual com seu plano B na gaveta – que ninguém divulga de antemão. A esta altura da maturidade do mercado, as startups bilionárias estão nas mãos de executivos tarimbados, deixando para trás a visão romântica dos tempos em que dois ou três geeks criavam soluções, programavam e corriam atrás dos consumidores. E quebravam por não saberem domar a vida corporativa.
Erros e acertos
Outro ponto que diferencia os unicórnios das startups tradicionais é que desafiar riscos e mudar os rumos em alta velocidade faz parte da alma dos empreendedores, o que implica alternar momentos de erros e acertos. Por mais que muita gente pense que a vida deles corra à base apenas de sorte e bons relacionamentos, não é bem assim.
“As pessoas pensam que o sucesso é uma linha reta crescente, mas, na verdade, as coisas dão errado, e muito, até darem certo”, diz Lauand, da Movile. Para ele, o jogo de cintura é fundamental para quem está em busca de acertar.
Será que, nesse caldeirão de opções, podemos escolher um segmento de atuação como o mais afeito a criar novos unicórnios? É arriscado pensar nisso. Diversos setores da economia estão presentes no ranking bilionário: financeiro, imobiliário, educação à distância, saúde, moradia, alimentação, agroindústria, transporte, produtos e serviços vários. De certa forma, seus ganhos reproduzem os ganhos da economia tradicional, longe dos aplicativos e startups. Daí o destaque, por exemplo, do setor bancário e da logística.
O certo é que há unicórnios para todos os gostos de investidores e empreendedores, com boas perspectivas de crescimento. Mas todo mundo deve ficar ligado nas notícias. Como a inovação tecnológica é repleta de surpresas, nada impede que, de repente, uma humilde startup apareça com uma ideia brilhante e revolucionária, derrubando a concorrência e disparando seu valor. E os ciclos de inovação estão bem acelerados.
Esse cenário não é de todo improvável, como mostra a própria história da internet comercial. “Hoje, os mercados estão cada vez mais rápidos e mais disruptivos, com empresas rompendo paradigmas de negócios anteriores. O risco para uma empresa sempre é tornar-se a vítima da próxima disrupção”, afirma Felipe Matos, da Abstartups. “E outro risco que temos visto é uma startup priorizar excessivamente o crescimento em detrimento de lucro, o que pode gerar uma percepção negativa em relação ao potencial dos negócios.”
Fonte: Valor Econômico