A primeira vez que vi Charlene Li pessoalmente foi em 2007, no Web 2.0 Summit, em San Francisco, mandando uma pergunta enviesada a um Mark Zuckerberg, com cara de adolescente, que estava no palco de chinelos: “você está feliz com tantos apps frívolos na plataforma”? Ela era principal analyst do Forrester Group.
Um ano depois, em 2008, ela decidiu empreender e fundou o Altimeter Group, focada, já na época, no assunto mais importante do momento atual: disrupção. Nesses últimos 20 anos, Charlene Li produziu seis best-sellers – incluindo o recém-lançado The Disruption Mindset: Why Some Businesses Transform While Others Fail -, emplacou a venda do Altimeter Group para o grupo Prophet (onde permanece como Senior Fellow), e tem ajudado centenas de executivos a lidar com mudança, liderança, futuro e ruptura.
De viagem marcada para o Brasil – vai ser uma das palestrantes da HSM Expo 2019 – ela concedeu uma entrevista exclusiva por telefone, que você acompanha abaixo. Sobre disrupção, Charlene Li não tem pena das lideranças: “As grandes empresas acham que podem terceirizar a inovação e a disrupção. E isso é falso, porque se você quer fazer a mudança certa, ela tem de acontecer no coração do negócio. Isso é muito difícil. Elas procuram por uma solução mágica que faça tudo isso acontecer. Isso não existe”.
Silvia Bassi
Disrupção é …
“O processo de passagem do status quo para algum estado futuro, no qual as relações de poder atuais se modificam. E, sempre que essas relações mudam, a sensação é de ruptura. Essa mudança pode ser de tecnologia, de estratégia e até de liderança. As causas da ruptura são muitas, mas a disrupção sempre vem quando se está tentando criar uma grande quantidade de mudanças.
A grande questão é quem é o criador dessa mudança. Se você decide fazer a mudança porque você pensa que é um bom lugar para estar, ou se você é vítima dela. Eu acredito que a diferença vem de saber se você joga para vencer ou apenas para se defender.
As incumbentes – empresas tradicionais – acham que podem gerenciar a mudança e que, portanto, ela não vai ser tão disruptiva. Elas querem crescer do jeito fácil e acreditam que é só uma questão de mudar o lado. Eu nunca vi crescimento ser fácil. Quando você está tentando crescer em um ritmo diferente, a taxas diferentes, pode ter certeza de que vai ser muito difícil. E eu acredito que esse é o grande problema, achar que vai ser fácil.
As pessoas acreditam que a realidade que veem e experimentam hoje vai durar para sempre. Elas pensam: ‘Foi tão difícil chegar até aqui. Eu finalmente tenho clientes, eu finalmente tenho lucratividade’. E olham em volta e não querem mudar as coisas porque podem quebrá-las, certo?
O principal ponto aqui é que seu consumidor está mudando. E aí voltamos à questão mais importante: que problema você está querendo resolver?
Você pode ter feito um excelente trabalho como empresa para resolver as necessidades que seus consumidores e clientes têm hoje, mas será que sua solução vai resolver seus problemas futuros? Você não sabe. E precisa parar e fazer as perguntas difíceis, ou você não vai estar preparado para o futuro.
Não se trata de ignorar seus clientes atuais, mas sim de apreciá-los, de entendê-los, de atendê-los corretamente, sabendo que eles podem não representar seus clientes futuros. Você precisa pensar no futuro e avaliar se os seus consumidores atuais se encaixam nele e como vai atender suas necessidades futuras com uma nova estratégia.
Se chegar à conclusão de que vai atender um consumidor completamente diferente, precisa fazer os sacrifícios agora, contratar as pessoas certas agora, para que possa realizar o futuro amanhã.
Um monte de organizações não faz isso porque é difícil de fazer, porque você não tem certeza nenhuma quem esse consumidor vai ser. Você pode achar que tem 50% de chances de ser esse. Mas pode ser aquele outro, ou outro mais adiante. Mesmo sem ter certeza nenhuma sobre quem é esse consumidor, você precisa se manter curioso e aberto às possibilidades.
E ouvir constantemente o mercado para captar mais sinais sobre esses consumidores até conseguir chegar em um modelo mais próximo, porque a verdade é que você está correndo o mais que pode para alcançá-los. Aí você diz, “sim, é esse, eu consigo atendê-lo”. Ou então chega à conclusão de que nem quer chegar perto dele.
Muitas vezes as empresas dizem “esse consumidor não se encaixa no nosso perfil, não queremos atendê-lo porque seria menos proveitoso”. Mas o novo cenário pede que você faça outras perguntas: “quem é esse consumidor? A gente consegue atendê-lo? Esse mercado pode crescer”?
Precisamos ser curiosos e entender se eles na verdade não representam uma mudança brusca no seu mercado. Esses são os verdadeiros sinais ao redor e é preciso disciplinar as organizações para entendê-los. Seu consumidor está lá fora, mas você só vai encontrá-lo se procurar por ele. Eu não consigo pensar em nenhum consumidor hoje que não tenha algum componente digital em sua jornada. E as empresas jogam fora um monte de dados que poderiam dar essas respostas.
Vou dar um exemplo, que eu não incluí no meu livro. Uma empresa chegou até mim e disse “estamos passando por muita disrupção”. Eu perguntei a que indústria eles pertenciam e a resposta foi: “nós estamos no ramo da areia. Fabricamos areia.” Minha reação foi perguntar se era isso mesmo, se eles fabricavam uma coisa que podia ser encontrada na praia. E ele explicou, “sim, fazemos areia e areia é o principal componente do vidro, que passa por mudanças rápidas, nos dispositivos digitais, nas casas, nos painéis solares…”
O ponto é que ele tinha um relacionamento direto com cinco ou seis grandes distribuidores, que lhe traziam a sua visão do mercado, mas ele precisava saber quais eram as necessidades do consumidor final. “Eu não vendo para eles, mas preciso saber o que eles estão buscando, preciso abrir um canal direto com eles agora e entender melhor isso”. Esse universo era de 10 mil pessoas, portanto estava claro para a empresa que o único caminho era usar os canais digitais para escalar a conversa e estabelecer um novo tipo de relação com esses clientes.
Eu conto essa história para exemplificar como nenhuma indústria está imune à ruptura.
Você precisa pensar de forma muito criativa sobre quem são seus consumidores e como você pode entendê-los em suas mudanças de hábitos. Mas, de novo, é preciso definir quem é seu consumidor e, em particular, quem é o seu consumidor do futuro e alinhar a empresa toda nessa busca.
Porque se vocês estão completamente alinhados como empresa para ir atrás dele, você vai ser capaz de encontrá-lo. E vai saber como vender para ele e como atendê-lo. Todos estarão alinhados em torno desse modelo do futuro consumidor.
E esse é um jeito muito simples, fácil, de descrever o problema para a companhia: estamos buscando quem queremos servir.
Há dois pontos importantes sobre líderes disruptivos. O primeiro vai ser meio óbvio, mas é ter abertura para mudar a todo momento. E acreditar que a grande mudança é uma boa coisa. Que é uma oportunidade, que é um lugar de aprendizado. Essas pessoas veem a mudança e não se apavoram com ela. Ficam entusiasmadas com ela.
O outro ponto é que precisam ter habilidades muito fortes de liderança e comportamento de líder e, em particular, a capacidade de empoderar e inspirar pessoas para encarar um objetivo comum. Porque isso vai fazer com que elas sejam boas líderes também. Os líderes disruptivos sabem realizar coisas através de outras pessoas. Eles podem ver a mudança, explicá-la, ter credibilidade com as pessoas e criar um movimento que junta todos para fazer uma grande quantidade de mudanças.
Eu acho que as startups fazem muitas coisas muito bem. São muito mais abertas e muito mais propensas a agir. Tudo isso são coisas boas. Mas eu também acredito que as incumbentes têm um bocado de vantagens. Por exemplo, elas têm clientes. Portanto conseguiriam falar com um número grande deles e entender quais serão seus futuros clientes. As incumbentes têm dinheiro em caixa e não precisam esperar. As startups precisam levantar investimentos. As incumbentes têm uma marca reconhecida pelas pessoas. Têm pessoas, têm escala. Veja, são muitas as vantagens.
Mas a base de clientes é também uma grande desvantagem, porque as torna cegas. São clientes lucrativos, por que deixariam esses clientes e sairiam procurando por pessoas que podem não ser tão lucrativas? Essa é a maior desvantagem que as incumbentes têm de superar.
As grandes empresas pensam que podem terceirizar a inovação e a disrupção. E isso é falso, porque se você quer fazer a mudança certa, ela tem de acontecer no coração do negócio. Isso é muito difícil, e é o motivo pelo qual elas querem delegar para outros fazerem, mas não tem como escapar. Elas procuram por um botão especial para apertar, uma solução mágica que faça tudo isso acontecer. Isso não existe.
Aproximar as startups das grandes corporações para gerar inovação só funciona se a inovação é, por exemplo, um produto que você quer colocar no mercado sem grandes mudanças para o seu core business. Se você está buscando inovação que vai mudar o coração do seu negócio, ela tem de ser trazida para dentro, e se você não preparou a casa para abraçar a mudança, esse processo vai falhar. Porque você na verdade não mudou nada. Todos esses centros de inovação e os laboratórios de startups só vão ter efeito se estiverem amarrados ao núcleo da companhia e associados às suas 3 principais prioridades.
Se não for assim, vira Teatro da Inovação. Elas vão ao centro de inovação, acham tudo excelente, sentem-se maravilhadas, aplaudem a si mesmas e voltam para casa para fazer tudo do jeito que faziam antes.
É muito importante preparar seus colaboradores. Em particular porque você vai ter de preparar os líderes da companhia para achar tempo para se focar na mudança e na transformação mesmo tendo que gerenciar o status quo vigente. Sim, porque se a única coisa que fazem todo dia é garantir que nada muda, será meio injusto você chegar para eles e dizer que agora precisam garantir que tudo muda. Eles precisam se candidatar a isso, se dispor a fazer a mudança da mesma forma que você se dispôs. Pode levar um ano, até dois anos para ter todo mundo pronto. Eu chamo isso de ir devagar para ir rápido. Ou tudo vai falhar.
Eu não vejo nenhum mercado desaparecendo por completo. Não se trata de extinção, mas trata-se de ver várias indústrias, que costumavam ser realmente grandes e prósperas, encolhendo. E esse é o ciclo da mudança, é o ciclo da vida, como dizemos. É muito, muito difícil um negócio ou uma indústria permanecer sempre a mesma e ser sustentável. Eu vejo algumas organizações grandes, como Nokia ou American Express que se reinventam o tempo todo e fazem isso direito. Enxergam novas oportunidades e decidem que vão se tornar outra coisa.
Portanto eu pergunto: Você consegue decidir em que negócio, em que mercado você está? Porque se você fabrica carros e decide que está no negócio de transportes, você pode não precisar mais fazer carros que as pessoas vão comprar. Esse é um jeito muito, muito diferente de pensar sobre o mundo.
Sobre o Brasil, apesar de não tê-lo incluído no meu livro, eu fiz um estudo sobre o país e o que vi foi um país com muito mais disrupção que a média dos outros países. O score era bem mais alto. E tem uma coisa sobre as pessoas no Brasil, que se veem como disruptoras, veem-se capazes de criar um bocado de disrupção porque o país passou por tantas mudanças que se acostumou a isso. Eu noto que tem muita energia, muitas oportunidades e, mais do que tudo, muitos empreendedores e empresas no Brasil dizendo “Por que não, por que não lideramos nesse espaço? Podemos criar a próxima grande inovação, não precisamos que ela venha até nós”.
Falamos sobre fazer transformação digital, mas precisamos também falar sobre transformações éticas. É necessário olhar para isso e renovar o sentimento de que é preciso ter uma linha dupla de chegada. Uma linha que diz que devo pensar sobre lucros e receita, e outra que diz que é necessário também pensar sobre ética, sobre fazer a coisa certa e investir na sociedade.
Porque, se eu tenho apenas lucros, eu não estou preparando a sociedade para um futuro melhor. Como fazer a coisa certa? Fazendo a coisa ética, não apenas a coisa lucrativa.
Fonte: The Shift