Na terça-feira, 10 de março, dia seguinte do crash global dos mercados financeiros, desencadeado pela combinação da pandemia Covid-19 com a briga entre a Rússia e a Arábia Saudita pelo preço do petróleo, a futurologista quantitativa Amy Webb conversava por telefone com a The Shift. A entrevista era sobre o Tech Trends Report 2020, 13a edição do estudo de tendências tecnológicas futuras mais badalado do mercado, produzido pelo Future Today Institute, criado por Amy em 2006.
A conversa tinha um propósito adicional: descobrir o que Amy iria falar em sua palestra do South by Southwest (SXSW 2020), neste domingo, 15/03, que também tinha sido disruptado e cancelado em função do Covid-19. Foi, portanto, a tempestade perfeita. E só podia começar com uma pergunta: “Como é que ninguém previu isso tudo?”
“Sabe, não tem como prever o futuro. Podemos reduzir a incerteza, mas há demasiadas variáveis desconhecidas. Neste momento, pensar como um futurologista é incrivelmente importante”.
“Porque empresas, bancos centrais e governos, todos estão apavorados, todos estão em pânico e todos querem saber o futuro. Eles querem saber o que vai acontecer. Nós não podemos saber. Um futurologista diria que o objetivo não é prever, é estar preparado. E a forma de estar preparado para o futuro é pensar continuamente na disrupção. Então o propósito do nosso relatório de tendências tecnológicas e toda a nossa pesquisa, na verdade, é ajudar a preparar as pessoas para a ruptura.
A abertura da minha apresentação da SXSW 2020 era totalmente sobre isso. Sobre incerteza e sobre a Arábia Saudita. E sobre a Rússia e o coronavírus. O que acontece é que todos estão muito apavorados e estão muito assustados, e as empresas estão começando a tomar más decisões. E em seis meses, todos vão estar em um ponto bem diferente. Você tem que pensar continuamente no hoje, mas também no futuro a longo prazo.
Do meu ponto de vista, o Covit-19 está provocando uma tonelada de novos investimentos em áreas como biologia sintética e agricultura. E, em consequência, essas áreas do nosso relatório terão mais influência no decorrer do ano.
Outra área é a incerteza política. Muitos governos não têm políticas claras, não apenas sobre o que fazer no caso de uma pandemia, mas em muitas outras coisas, como inteligência artificial e edição genética, e o problema é que esta não vai ser a última pandemia, elas estão mais freqüentes. Os governos também devem fazer planos e previsões a longo prazo. Se não o fizerem, o resultado pode ser um desastre não só para as pessoas. Temos grandes mudanças econômicas que estão chegando e, consequentemente, as empresas dependem dos governos para tomar decisões inteligentes. E se você não tem uma ferramenta para lidar com a incerteza, então você é dominado pelo medo”.
“O medo leva à ansiedade e a ansiedade leva à tomada de más decisões. Eu diria que estamos vendo atualmente muita ansiedade corporativa.”
A Década Sintética
• Um dos destaques do estudo é o que o Future Today Institute chama de Biologia Sintética (Synthetic Biology), que pode, por exemplo, criar um organismo que não existe na natureza, reparar genes defeituosos, destruir células cancerígenas, eliminar toxinas e ajudar na produção em massa de proteínas em laboratório para consumo humano. “Poderia ser a chave para um planeta saudável, no qual não precisamos tomar remédios porque nossas células estão programadas para combater qualquer coisa”.
• A Década traz consigo questões éticas ainda mais complicadas, já que virtualmente qualquer tipo de indústria pode ser impactada pelas tecnologias disponíveis e o nível de manipulação vai da edição do DNA à criação de mídias sintéticas como personagens gerados por Inteligência Artificial e assistentes digitais com formas humanas. “As empresas vão ter que avaliar os riscos de segurança do material sintético para ganhar a confiança e a aceitação do público e aprovação governamental”.
• Um dos pontos de alerta é a entrada das Big Techs – Amazon, Microsoft, Walmart —na área da agricultura. Enquanto a Microsoft lançou um programa para modernizar a agricultura com data analytics, em funcionamento em duas fazendas nos Estados Unidos, o Walmart (considerado como empresa de tecnologia), está abrindo sua própria produção de alimentos plant-based e laticínios, e a Amazon, de Jeff Bezos, investindo em fazendas verticais.
“A agricultura é uma área em que tipicamente os governos investem. Mas se o governo está ocupado olhando para trás, ou tentando voltar para algum lugar no passado, as empresas privadas podem entrar e fazer um monte de pesquisas avançadas. O problema é que se não há um vigia, o resultado pode não agradar às pessoas do país.
Veja a questão das mudanças climáticas. Cuidar das florestas tropicais é importante. Mas com as mudanças climáticas acontecendo, sabemos que vai ser mais difícil produzir certos alimentos e que a cadeia de abastecimento vai ser afetada. Sabemos que, para que continue viável no futuro, o Brasil vai ter que modernizar todo o seu setor agrícola.
Se o presidente Bolsonaro fosse inteligente neste momento, orientaria o governo a fazer investimentos em tecnologias emergentes. Muitos dados e novas maneiras de plantar e investir que podem estar dentro de casa. Pode ser a agricultura de precisão. Usar dados para realmente entender as especificidades sobre culturas e gestão de culturas.
É um enorme desafio político. O Brasil é um ambiente incrivelmente rico culturalmente. Vocês têm uma economia digital robusta. Há uma tonelada de oportunidades. Infelizmente, acho que vocês têm um presidente que não está disposto ou interessado em aceitar mudanças. E isso é uma pena.
Toda pessoa viva tem um score
• E, não, não estamos falando da China. No relatório Tech Trends 2020, o destaque fica por conta de que precisamos ser monitorados e ter nossos dados minerados, produtizados, tagueados e catalogados para que os sistemas de automação dos quais estamos dependentes funcionem. É o que Amy Webb (foto) está chamando da Era do Determinismo Algorítmico.
• Centenas de empresas classificam secretamente, e coletivamente, os consumidores, usando uma combinação de dados como por exemplo quantas vezes abrimos um app no smartphone, que dispositivos usamos, por onde andamos, que tipo de comida consumimos. A previsão é que, depois da privacidade dos dados pessoais, nos próximos anos o scoring secreto entrará na mira dos órgãos reguladores.
“Há muita mudança, acontecendo rapidamente, e a tecnologia está se tornando mais difícil de entender. No relatório deste ano, temos 28,8% mais tendências do que no ano passado. Houve muitas mudanças em áreas-chave como IA, automação doméstica e computação quântica, entre outras coisas.”
“Há um desafio claro ligado a todas as tecnologias e tendências que é o scoring. Para que muitos dos nossos sistemas automatizados funcionem, eles têm que nos quantificar, eles têm que contabilizar as nossas ações, os nossos valores. Por um lado, precisamos destes sistemas de pontuação, precisamos de vigilância persistente para que os sistemas funcionem. O problema é que não há realmente qualquer supervisão, não há transparência, não há explicabilidade e não há responsabilidade.
Eu ia apresentar na SXSW uma ferramenta que eu construí para mostrar a todos exatamente como eles tinham sido rastreados desde o momento em que aterrissaram em Austin. Isso ia deixar todos super desconfortáveis. A questão é que é tudo invisível. Ninguém percebe que é isto que acontece. E geralmente quando a tecnologia está em uma situação como essa, o que acontece é que a curto prazo há muito dinheiro a ganhar. Há muito lucro e, no longo prazo, uma regulamentação massiva se segue.
Não seria mais inteligente se no início todos dissessem: “Ei, vamos ter uma conversa para descobrir a melhor maneira de manter as pessoas no centro de toda essa tecnologia”. E isso nunca acontece dessa maneira. Com qualquer tecnologia, é sempre primeiro construir, espremer o máximo de lucro que pudermos e depois lutar contra a regulamentação. E isso é uma maneira retrógrada de inovar.
Há algumas outras tendências no relatório que estão ligadas a isto. Por exemplo, o que se chama algoritmos evolutivos. É por aí que um algoritmo vai evoluir. Ele vai tentar muitas combinações diferentes, muitas soluções diferentes repetidas vezes e depois, rapidamente, usando quantidades incompreensíveis de dados, chegar a um resultado. Mas sem um ser humano no loop, sem um ser humano participando, não sabemos inteiramente como tudo isso funciona ou quais são os dados. E isso potencialmente causa problemas em algum momento.
“Cada país está propondo suas regras. Mesmo nos Estados Unidos, temos legislações diferentes, cada Estado tem agora os seus próprios regulamentos. Se você é uma empresa, a conformidade vai se tornar um pesadelo no futuro próximo.”
“Temos de começar a pensar como podemos criar o futuro de uma forma que seja boa para todos. E fazer as coisas difíceis primeiro. Vamos descobrir como torná-lo transparente. Vamos descobrir como criar proteções, normas e padrões e vamos descobrir uma maneira de todos ganharem dinheiro também. Eu acho que todas essas empresas deveriam ser capazes de ganhar o máximo de dinheiro possível, mas acho que precisamos fazer isso de uma maneira mais inteligente.
IA, Quantum Computing, China e Medo abjeto
• IA como serviço e Data como serviço vão mudar os negócios. O futuro da transformação digital passa por essas duas áreas que têm como grandes players Microsoft, IBM, Google, Amazon, Facebook and Apple, todas desenvolvendo novos serviços e ferramentas. Um dos destaques dessas tendências é o projeto AWS For Everyone —uma plataforma que vai permitir a qualquer empresa criar aplicações com seus dados corporativos.
• A Computação Quântica e a Computação de Borda (Edge Computing), entraram pela primeira vez no estudo como tendências “em aquecimento”. A recomendação é olhar para o que virá nos próximos 18 meses, abrindo caminho para uma era de máquinas mais poderosas e mais rápidas por estarem mais perto dos dados.
• A China criou uma nova ordem global e vai continuar pela década afora. É um erro achar que a China perdeu força. Em 2020, o país vai passar os EUA como maior mercado consumidor de filmes e cinema (US$10 bilhões em receita) e continua a avançar em áreas críticas como infraestrutura digital, inteligência artificial, scoring, coleta de dados, bioengenharia e exploração espacial.
• Medo Abjeto, conhece? Facebook, Instagram, Snapchat, Reddit e Twitter são usadas intencionalmente para causar pânico, alarmismo e medo entre diferentes grupos sociais. Pela primeira vez, a cultura do “cancelamento” adotada nas redes sociais entrou para a lista de Trends do estudo.
• O medo e a dúvida gerados pelas fakenews e deepfakes abrem caminho para um novo ecossistema de ferramentas que servem para garantir a confiança no mundo digital, mas que também podem ser usadas para manipulá-la. A Inteligência Artificial vai gerar sistemas de vigilância usando algoritmos para detectar e alertar contra conteúdo manipulado e que poderão ser contratados por assinatura.
“Não cobramos por este relatório e tornamos toda a nossa pesquisa livre e disponível para todos porque queremos que as pessoas tomem medidas agora.”
“Há abundância de tecnologias e é por isso que o relatório é tão grande. Muitas empresas estão habituadas a prestar atenção somente nas tendências ou mudanças das suas indústrias. E o que estamos tentando mostrar que todas essas coisas estão relacionadas, interligadas. Criamos aquela pequena matriz que diz para agir ou esperar ou usar para a sua estratégia. Estamos tentando ajudar as pessoas a tomarem medidas no futuro agora. E pode começar pequeno.
Quando olho para o futuro, escolho a esperança. Eu sei que isso parece loucura, mas é porque o futuro não está predeterminado. Ele ainda não aconteceu. Eu acho que sou uma otimista. Isso não significa que eu ache que tudo vai ser perfeito e maravilhoso. Na maioria das vezes eu aponto para futuros distópicos, mas acredito que todos nós temos uma oportunidade de fazer melhores futuros, caso contrário eu não seria capaz de dormir à noite.”
“Portanto, sim, acredito, com a ressalva de que tenho esperança, que faremos boas escolhas e que criaremos melhores futuros.”
Fonte: The Shift