“Nosso entendimento é que a conta não fecha”.
A mensagem era para mim. Do outro lado da mesa, estava Michel Brull, sócio da Renaissance Executive Forums. Ele não se referia a nenhuma empresa específica, mas às startups em geral, que combinavam prejuízos gigantescos e valuations ainda maiores.
Eu podia entender aquele sentimento. Na mesma semana, o banco digital alemão N26 havia levantado US$ 170 milhões a um valuation de US$ 3,5 bilhões em uma operação que não fazia dinheiro. Em uma entrevista, o fundador do N26 declarou que a lucratividade não era uma das suas principais métricas e que a empresa não tinha objetivo de dar lucro no curto prazo.
E a conversa com Michel seguiu mais ou menos assim.
“Eu queria que você explicasse para o meu grupo essa mágica por trás dos financials das empresas da nova economia”.
O título da palestra havia sido criado. Não havia como negar um convite desses. E lá fui eu tentar explicar para um grupo de CEOs altamente qualificados um pouco da dinâmica do ecossistema de startups. O racional do meu papo foi mais ou menos assim, tirem suas próprias conclusões:
1. Startup não é PME #Mindset
“PME vende o almoço para pagar a janta, precisa gerar caixa todo dia. Startupeiro também opera na escassez permanente, mas sua ambição tem que ser maior. Ele olha para a porrada grande lá na frente”.
PMEs criam negócios que geram caixa. Precisam ganhar dinheiro todo mês para pagar as contas. Precisam dar lucro. Se bem gerido, esse ganho vai crescendo aos poucos, ano a ano.
Startups são um bicho diferente, buscam negócios escaláveis. Não se preocupam em ganhar dinheiro no curto prazo porque recebem grandes doses de investimento para financiá-las. Querem ganhar muito dinheiro, de uma vez só, lá na frente. É um jogo de risco, all in, tudo ou nada.
2. Acelera! #GestaoDeCaixa
“Empreendedor de startup é que nem piloto de Fórmula – 1. Está buscando sempre volta mais rápida atrás de volta mais rápida. Nada mais interessa. A gestão da caixa só entra em cena quando acende a luz do combustível. Ele só se preocupa quando a gasolina tá perto de acabar”.
Empreendedor de startup sabe que, neste jogo, velocidade é fundamental. Por um simples motivo: em algum canto do globo, tem uma outra pessoa construindo uma empresa igual à sua, provavelmente em um estágio mais avançado que o seu. Por isso, ele precisa aprender o mais rapidamente possível como ser a empresa mais eficiente na resolução do problema a que se propôs a resolver. Se na Velha Economia, ganhava o jogo quem tinha uma grande ideia, na Nova Economia, ganha quem aprende mais rápido.
Nesta lógica, todo dinheiro que estiver à disposição do empreendedor deve ser usado para atrair clientes para seu negócio e, a partir dos seus feedbacks, trabalhar na melhoria desse produto. Principalmente nos primeiros anos. Não faz sentido focar na geração de caixa. O foco está, de novo, em aprender o mais rápido possível. Nem que isso custe um caminhão de dinheiro.
Por isso, é normal que startups early stage queimem caixa. Isso é aceitável desde que ela esteja aprofundando o conhecimento em relação a seu consumidor e melhorando o produto para torná-lo mais competitivo. Tudo isso, claro, o mais rápido possível.
Isso só é possível porque vivemos, há alguns anos, um cenário de excesso de liquidez. Essa abundância vem do apetite a risco por parte de investidores que buscam retornos maiores que as baixíssimas taxas de juros que são praticadas mundo afora. Some-se a isso o desejo pelo novo, o ecossistema das startups é algo que gera em investidores uma sensação de “não sei bem o que é isso mas não posso ficar de fora!”. A combinação é perfeita para empreendedores surfarem a onda dos bolsos fundos.
3. Top Line x Bottom Line #Rentabilidade
“Nesta etapa, tem que crescer, ampliar base, não focar em rentabilidade. O ajuste vai acontecer mais a frente”.
A mesma lógica do caixa vale para a competência. Num cenário de excesso de liquidez, em que há dinheiro farto e disponível, o empreendedor tampouco se preocupa em dar lucro. O foco, novamente, está na expansão da base de clientes e do market share. Porque os investidores financiam esse crescimento, eles apostam que isso se pagará lá na frente. É por isso que você recebe todos os dias um cupom de desconto da Rappi e outro da Uber Eats, é por isso que todo dia tem promoção da 99 e da Uber. Eles estão se digladiando pela aquisição e retenção de clientes. Muito provavelmente, todos perdem dinheiro no curto prazo fazendo isso, mas, de novo, o foco está no longo prazo.
Para muitas startups de crescimento acelerado, a fase de tração “a qualquer custo” também tem como objetivo matar eventuais concorrentes. Nem todos os players tem funding abundante e acabam sendo asfixiados por este tipo de prática. De novo, em algum momento, a empresa precisa virar para a chave da rentabilidade. E é aqui que a coisa, muitas vezes, começa a desandar…
4. Modelo tradicionais não servem #Valuation
“Como vou calcular valuation de uma empresa que queima caixa, só dá prejuízo e que não se propõe a mudar isso no curto prazo?”
Modelos tradicionais de valuation não podem ser aplicados a startups. Por um simples motivo: a conta sempre vai dar zero.
O valor de uma startup é medido a partir de uma projeção de valor potencial baseado em números e uma pitada de story teling – ou o contrário disso. Na hora de valorar um negócio como esses, os fundos olham para três elementos: o empreendedor, o produto e o tamanho do mercado.
Costuma-se recorrer a um player do mesmo setor que tenha um valuation e dados financeiros públicos para se aplicar a lógica de múltiplos. Exemplo: vamos dizer que no seu IPO, o PagSeguro foi valorado a 1,5x TPV (referência hipotética) — ou seja, seu valor foi estimado em uma vez e meia o Total Payments Value. Todas as empresas do setor passam a ter uma referência e podem ser valoradas na mesma lógica, sempre se adequando a cada realidade. É como se fosse uma jurisprudência do valuation para aquele setor.
Mas uma startup que queima caixa e dá prejuízo pode valer algum dinheiro? A partir do momento que alguém paga, ela vale. De novo, a aposta é lá na frente.
5. Poucos e bons #CabecaDeInvestidor
“Investidor sabe que 3 startups em 10 vão vingar. E foca sua atenção e esforços nos cavalos vencedores”
Quando escolhe uma startup para investir, um investidor sabe que está fazendo uma aposta de risco. Para minimizar isso, ele costuma apostar nas pessoas que estão conduzindo o negócio. Esse é seu porto seguro. Startups falham o tempo todo, pessoas capacitadas sempre têm condições de resolver problemas – mesmo aqueles que ainda nem sonham que irão existir.
Ao mesmo tempo, o investidor sabe que a maior parte daquelas startups ficarão pelo caminho — cerca de 70% delas, para ser mais exato. É por isso que sua lógica é a de que ganhos de poucas startups vencedoras deverão ser tão grandiosos que pagarão por todo seu portfólio.
6. Bom de negócio, bom de fundraising #empreendedor
“O cara precisa ser bom de tocar negócio e bom de levantar dinheiro. Não tem outra saída”
Se o jogo é levantar dinheiro e gastar melhorando seu produto, a um bom empreendedor não basta ser um bom gestor de negócios. Ele também precisa ser muito bom em levantar novas rodadas de capital. Ou ficará pelo caminho.
Ok, entendi, mas ainda assim, em algum momento, essas startups terão que dar lucro e retorno aos seus acionistas, certo?!
Sim e não.
De fato, muitas delas já estão dando retornos massivos a seus acionistas. Principalmente àqueles que apostaram no início. Ganha o jogo quem viu valor antes dos demais. Entrar tarde em uma startup muitas vezes pode ser uma experiência parecida aquele jogo infantil da batata quente. Uma hora, ela queima e pode ser que seja na sua mão.
Agora, muitas delas não dão lucro e nem nunca darão. E aí realmente fica complicado a geração de valor. Não faz sentido uma empresa privada que seja deficitária para sempre. Ninguém vai topar pagar essa conta para sempre. Uma hora a conta vem.
*Renato Mendes é sócio da Organica, professor de marketing digital do Insper, mentor Scale Up da Endeavor Brasil e autor de “Mude ou Morra. Já empreendeu, ocupou posições de liderança em startups, foi advisor de fundo de venture capital, mentor e investidor dessas estrelas da nova economia.
Fonte: Época Negócios