François Dossa não fez carreira na indústria de tecnologia, mas há muito tempo conhece uma das máximas do setor: a de que uma das poucas coisas que se sabe é que nunca se sabe de onde virá a próxima grande inovação. É isso que justifica seu trabalho atual: depois de 17 anos no Brasil, onde foi presidente da Nissan de 2013 até março do ano passado, o executivo francês naturalizado brasileiro tem percorrido o mundo atrás de startups capazes de ajudar a Aliança Renault -Nissan- Mitsubishi a desenhar o futuro do automóvel e, por extensão, da mobilidade humana.
Dossa (lê-se Dôssá) comanda a Alliance Ventures, criada em janeiro deste ano com a meta de investir US$ 1 bilhão em cinco anos. A empresa é financiada em 40% pela Renault, 40% pela Nissan e 20% pela Mitsubishi. O executivo mora em Paris e viaja com frequência para Amsterdã, onde está a sede da Alliance. Até agora, foram investidos cerca de US$ 70 milhões em seis startups, metade delas americanas. As outras são da China, da França e de Israel.
No Brasil, onde esteve recentemente, Dossa avaliou 15 empresas. “Todas têm mérito, o que me deixou otimista”, diz o executivo ao Valor. Duas delas têm potencial para receber recursos da Alliance Ventures por apresentar tecnologias consideradas muito inovadoras. Os nomes das startups não são revelados para não despertar a atenção dos concorrentes. “Encontrei muita coisa interessante, mas que já tinha visto em outros lugares”, comenta.
A indústria automotiva está em um claro ponto de inflexão. A expectativa é que os carros se transformem em serviços contratados pelas pessoas, em vez de cobiçados bens de consumo como ocorre desde 1908, quando Henry Ford passou a produzir automóveis em massa. Já em estágio avançado, os carros sem motorista são uma expressão dessa mudança. Mas enquanto a indústria de tecnologia tem ciclos curtos de desenvolvimento – basta pensar em quantos computadores e celulares são colocados no mercado anualmente – as montadoras gastam, em média, de quatro a cinco anos para conceber um modelo. O desafio é como projetar, hoje, um automóvel que vai circular em 2022 quando a inovação tecnológica anda a passos tão largos.
Para parte dos analistas, esse descompasso levou a críticas de que as montadoras saíram atrasadas em relação às empresas de tecnologia, que tentam ocupar um espaço cada vez maior no setor automotivo. Dossa discorda. “Foi Carlos Ghosn [presidente mundial da Renault-Nissan-Mitsubishi] o pioneiro na defesa do carro elétrico”, argumenta. “Na época, ele foi muito criticado porque decidiu investir EUR 5 bilhões no projeto de desenvolvimento de modelos elétricos. Diziam que, com esse valor, poderiam ser lançados 17 modelos convencionais”. Hoje, afirma o executivo, toda a indústria tem carros elétricos em sua linha. “Até 2022, vamos lançar 12 novos modelos elétricos.”
Companhia avaliou 15 startups brasileiras, das quais selecionou duas que podem vir a receber aportes
O receio não é que grandes grupos de tecnologia como Google, Facebook ou Microsoft lancem veículos com marcas próprias. “Eles nunca vão fazer carros porque as margens [do setor de tecnologia] são de 30%, enquanto na nossa indústria vão de 5% a 7%”, compara Dossa. “Não faria sentido.”
O que está em jogo é outra coisa: quem vai controlar as tecnologias embutidas nos carros à medida que elas libertem os motoristas da tarefa de conduzir os veículos e os automóveis passem a produzir dados dos usuários. Mal comparando, é saber quem vai ocupar o papel que a Microsoft desempenhou no mundo dos PCs ou que o Google e o Facebook exercem na web. O papel de Dossa é garantir que um dos maiores fabricantes de veículos do mundo tenha condições de travar uma luta justa nessa disputa. “Isso está aberto ainda. Ninguém pode dizer que é tarde demais [para as montadoras]”, afirma.
As seis startups selecionadas pela Alliance Ventures até agora fazem coisas bem diferentes entre si. Uma delas criou um polímero sem cobalto para baterias de carros elétricos. O assunto é hermético, mas as vantagens são bem práticas. “Se der certo, vamos colocar no mercado uma bateria com autonomia muito maior quatro anos antes que o imaginado”, diz Dossa. Isso é estratégico porque essas baterias são caras – representam 60% do custo de um modelo elétrico, afirma – e têm na autonomia um de seus pontos fracos.
A Alliance Ventures não funciona como os fundos de participação tradicionais, que entram em negócios com planos de sair depois de recuperar o investimento. A estratégia é comprar fatias entre 10% e 15% das startups, assumindo um lugar no conselho de cada companhia. “E não pedimos exclusividade. Podemos ter um competidor na mesma empresa”, diz Dossa.
No alvo estão startups que passaram das primeiras fases de investimento e já têm um protótipo pelo menos. “Não queremos engessar a empresa. O que oferecemos é dinheiro e o volume de vendas [para a disseminação da tecnologia] proporcionado pelos 10 milhões de veículos que produzimos todos os anos.”
O que está em jogo é quem vai controlar os dados gerados pelos carros à medida que a tecnologia avança
Sinal dos tempos, a criação do fundo foi anunciado na CES, a maior feira mundial de tecnologia, realizada anualmente em janeiro, em Las Vegas. Nos últimos anos, a exposição tem roubado a atenção do Salão do Automóvel de Detroit, que ocorre pouco depois. A princípio, a ideia da Alliance Ventures era receber os planos de negócio diretamente dos empreendedores, mas com o tsunami de projetos encaminhados ficou claro que seria impossível avaliar todos eles. A companhia, então, mudou a abordagem. Os próprios funcionários das empresas que compõem o grupo podem indicar startups. Renault, Nissan e Mitsubishi empregam 475 mil pessoas no mundo.
A Alliance Ventures também se aliou a seis fundos de investimento, que, por ano, avaliam cerca de 8 mil startups. As que têm maior identificação com mobilidade são indicadas à Alliance. Os fundos têm sede na Europa, nos Estados Unidos (dois), na China, em Israel e no Japão.
No Brasil, o número de startups vêm aumentando. O total de empresas filiadas à ABStartups, uma associação do setor, aumentou de 2,5 mil em 2012 para 4,2 mil em 2016. Mas o país ainda está distante dos campeões globais. Para comparar, enquanto em Israel o total de investimento nas empresas novatas de tecnologia somou US$ 5,2 bilhões em 2017, segundo o instituto IVC Research, no Brasil o número foi de US$ 860 milhões, de acordo com a Lavca, a associação latino-americana de fundos de capital de risco.
Existem ilhas de excelência no país, como o Cubo e o inovaBra, iniciativas dos bancos Itaú e Bradesco, respectivamente, mas falta uma política capaz de unir as pontas envolvidas. “Temos todos os ingredientes, com escolas como a USP [Universidade de São Paulo] e a Unicamp [Universidade Estadual de Campinas], e fundos de capital de risco, mas não há uma política para ligar tudo”, diz Dossa. “Vi muitas iniciativas, mas não um ecossistema organizado.”
Essa tarefa é do governo, afirma o executivo. Na China, que não tinha apelo tecnológico até duas décadas atrás, foram as autoridades que investiram pesadamente para mandar bons alunos a universidades estrangeiras e, paralelamente, criar incubadoras, aceleradoras e fundos de investimento para estimular a inovação. É o mesmo que o presidente Emmanuel Macron está fazendo, agora, na França com o projeto France Tech. “Espero que o Brasil também entenda a necessidade de criar políticas públicas para organizar a inovação”, diz Dossa.
Fonte: Valor Econômico