Mesmo com todos os avanços da ciência de dados no desenvolvimento de modelos preditivos através de algoritmos avançados de deeplearning, prever o futuro em circunstâncias totalmente aleatórias, como por exemplo acertar na loteria, ainda é algo praticamente impossível, pelo menos do ponto de vista da nossa matemática pitagórica. No entanto,, para além dos limites da ciência, o ser humano tem uma habilidade única: a de sonhar e imaginar o futuro. Não pretendo aqui fazer previsões futuristas acerca da tecnologia, Yuval Harari e Kevin Kelly, fizeram isso muito bem nos consagrados best sellers “Homo Deus: Uma Breve História do Amanhã” e “Inevitável: As 12 forças tecnológicas que mudarão o nosso mundo”. Tampouco pretendo criar um roteiro de ficção científica como George Lucas ou Steven Spielberg. Entretanto, busco, tão somente, compartilhar visões dos processos de transformação que podem estar germinando nesse exato instante.
Em uma brilhante palestra do TEDx proferida em Berkeley, Guy Kawasaki lista 10 pontos fundamentais para a arte da inovação. Entretanto, neste artigo irei focar no ponto que mais me chamou a atenção: a próxima curva.
Não importa se você é Willian Orton, Ken Olsen, Steve Ballmer, John Antioco ou o Walter Mercado, todos eles já erraram feio em suas previsões. O motivo para que eles acreditassem que o telefone não iria superar o telégrafo, que nenhuma pessoa teria interesse em um computador doméstico, que o iPhone seria um fracasso comercial ou que as pessoas continuariam alugando DVDs para sempre, não foi por falta de informação, mas por três fatores: complexidade (a tecnologia se transforma em escala exponencial), assimetria (cada um tem um ponto de vista diferente dos fenômenos em transformação) e incerteza (não é possível saber exatamente qual será o ponto exato da transformação).
“Não existe nenhuma chance de que o Iphone se torne um sucesso de mercado. Nenhuma chance!” Steve Ballmer
Podemos antever a próxima curva da inovação?
Então, diante desses obstáculos, como podemos antever a próxima curva? Antes de brincarmos com as nossas bolas de cristal, vamos analisar alguns aspectos históricos e antropológicos que apontam para o início do declínio das tecnologias atuais. Muitas vezes subestimamos o poder de uma nova tecnologia, e para comprovar isso, gostaria que fazer uma breve viagem no tempo e retornar ao período paleolítico, mais conhecido como idade da pedra lascada.
O primitivo homosapiens com seu córtex frontal e seu polegar opositor, utilizando apenas armas de pedra e ferramentas rudimentares, que na época foram grandes inovações, conseguiu povoar ⅔ do planeta e levar centenas de espécies animais à extinção. Isso diz muito sobre o poder da tecnologia.
Da mesma forma que acertar qual será a próxima curva é um grande desafio para a mente humana, prever o fim de uma tecnologia também é. Vejam o caso do rádio, por exemplo. Desde o advento da televisão que se profetiza o fim do rádio, depois com a internet novamente se alarmou o fim do rádio. Todavia o rádio segue como um importante meio de comunicação. Segundo estudo do IBOPE, o rádio impacta atualmente 86% da população brasileira. O rádio não só sobreviveu às novas tecnologias como inspirou que elas se reinventassem, surgindo assim o boom dos podcasts. O grande segredo está na capacidade de conectar pessoas através das informações e além disso permitir que façam outras atividades enquanto consomem um conteúdo, mantendo um baixo custo para a aquisição da tecnologia, o que garante acessibilidade. O rádio chega onde a internet não chega.
A tecnologia dominante atual são os smartphones e é praticamente impossível pensar como seriam nossas vidas sem eles. Nos termos da Lei de Moore, 13 anos é muita coisa. Steve Jobs lançou sua grande inovação em 9 de janeiro de 2007 e, apesar da sua capacidade de produzir dados numa quantidade, velocidade e diversidade exponencial, desde então pouco se viu de realmente inovador para além de aprimoramentos superficiais como design, câmeras e baterias mais potentes.
A maior inovação do celular está no fato de ser um dispositivo híbrido capaz de se adaptar às necessidades do usuário de várias formas. Uma geladeira será sempre uma geladeira, mas um celular pode ser uma lanterna, uma fita métrica, um estúdio de áudio, leitor de código de barras, caixa eletrônico, um livro de receitas ou até um aparelho de neurocirurgia avançada.
“Nem Steve Jobs sabia que o iPhone mudaria a vida das pessoas” Steve Wozniak
Transição de uma curva para outra
Você já contou quantos aplicativos tem instalados no seu celular? Eu fiz o teste e fiquei surpreso ao descobrir que tenho 141 aplicativos, sendo que uso pouco mais de dez no dia a dia. Existem hoje na Apple Store e Play Store mais de 6.8 milhões de apps disponíveis aos usuários para download. Apesar do elevado número de celulares em todo mundo, mais de 5 bilhões de aparelhos ativos (só no Brasil existe mais de um aparelho por habitante), o mercado começa a mostrar seus limites.
Os usuários estão cada vez mais seletivos com o uso de aplicativos, buscando preservar e economizar seus dados. Em uma pesquisa realizada pela Gartner, a venda de celulares teve a sua pior queda em 2019 e a tendência é continuar caindo.
O grande problema, é que caso surja uma tecnologia para substituir os smartphones, o que é bastante provável num futuro próximo – embora isso ainda não pareça factível –, todas as startups baseadas em aplicativos mobile terão que se reinventar, e normalmente nesses processos de transição poucos negócios sobrevivem, pois a mudança é muito rápida e poucos conseguem acompanhar a velocidade de transição de uma curva para outra. Quando, em janeiro de 1886, o engenheiro alemão Karl Friedrich Michael Benz registrou a patente do modelo de automóvel DRP 37435, o que seria o início da famosa marca Mercedes-Benz, nenhuma fábrica de carroças se tornou fábrica de automóveis. Restaram poucas fábricas de carroça para contar essa história.
“Se eu tivesse perguntado às pessoas o que elas queriam, elas teriam dito cavalos mais rápidos” Henry Ford
A tecnologia e a inovação foram pouco a pouco removendo obstáculos que permitiram à humanidade se aprimorar cada vez mais e isso se reflete diretamente na sua capacidade de solucionar problemas. Este artigo, por exemplo, só pôde ser escrito, graças ao advento da Internet e com a ajuda imprescindível do Google, que me permitiu realizar pesquisas em tempo real sobre diversos temas aqui abordados. Mas toda solução, por mais inovadora que seja, carrega consigo, de forma intrínseca, os problemas que irá gerar no futuro. São justamente esses problemas o insumo de onde poderá surgir a próxima inovação disruptiva da humanidade. É preciso estar sempre atento aos problemas para identificar os sinais que apontam para a próxima curva.
Evolução da tecnologia
Na visão do futurista Ray Kurzweil toda vez que uma tecnologia encontra um obstáculo que interrompe ou desacelera seu desenvolvimento, surge uma outra tecnologia que rompe com essa barreira. Ele acredita que em 2045 a humanidade deve atingir a singularidade tecnológica.
O termo singularity foi criado em 1950, por John von Neumann e significa o momento em que a civilização atingirá níveis tecnológicos tão avançados, que mudarão tão profundamente os paradigmas da sociedade como um todo. Neste estágio, a inteligência artificial irá superar a inteligência humana, de tal forma que a nossa mente limitada de hoje é incapaz de prever exatamente o que isso significará. Ou seja, singularidade é como se a humanidade fosse um veículo em alta velocidade que entrasse numa curva acentuada de inovação e capotasse.
“A aceleração do progresso tecnológico e as mudanças no modo de vida humana, dão uma aparência de singularidade essencial na história da raça, para além da qual os assuntos humanos, como os conhecemos, não podem continuar” John von Neumann
Período de oportunidades
Diante desse cenário de incertezas e aleatoriedades tentarei apontar quais são os fatores cruciais desse processo de transição cheio de oportunidades que estamos vivenciando nesse exato instante.
O primeiro deles é o blockchain. Muito mais do que criptomoedas, as redes descentralizadas nesta nova tecnologia podem reestruturar toda a arquitetura das relações sociais, onde o consenso e a coletividade passam a ser as regras de segurança e confiança dos negócios. Existem aplicações em blockchain que vão de identidades virtuais à cartórios digitais, mas uma das iniciativas mais interessantes que vi nos últimos tempos foi uma nova internet baseada em blockchain, a ZeroNet. Através dela, seu computador se torna um servidor de internet compartilhada Peer to Peer (P2P), sem um servidor central, permitindo inclusive o acesso à rede sem conexão com a internet tradicional.
Isso pode democratizar o acesso à uma internet livre e segura. Este projeto lembra muito a “Pied Piper” da aclamada série “Silicon Valley”.
Outra iniciativa ousada que vai no mesmo sentido de repensar a atual estrutura das tecnologias é a Web dos Dados, que está sendo desenvolvida pelo mesmo criador da antiga Web, Tim Berners-Lee, como uma tentativa de corrigir os defeitos da internet.
Há quase 20 anos, este gênio projetou a web como um espaço de compartilhamento de informações para que pessoas (e máquinas) pudessem se conectar, dando origem à “Era Social”. Já naquele tempo, nos primórdios da internet discada, ele previu a formação das redes sociais a partir da interação entre pessoas e hipertextos intuitivos e legíveis por máquina. O que era um sonho de conectar pessoas de forma aberta e livre, acabou se tornando uma distopia. Desde então Berners-Lee, que já elogiou publicamente o Marco Civil da Internet no Brasil, tem se posicionado de forma crítica para apontar os limites da web em seu modelo tradicional. As três principais ameaças são as seguintes: atividades maliciosas, como hacking e assédio; projetos de design duvidoso, como modelos de negócios que recompensam cliques; e consequências não intencionais, como discussões agressivas ou polarizadas.
“O Marco Civil da Internet ajudará a iluminar uma Nova Era na qual os direitos dos cidadãos continuarão protegidos pelas leis digitais em todos os países do mundo” Tim Berners-Lee
Tecnologias coletivas
Trouxe esses dois exemplos apenas para ilustrar um pouco do que pode ser a próxima curva. Hoje, estamos bastante conectados, mas de forma isolada, cada um com seu dispositivo móvel como ilhas num oceano de informação e experiências digitais. Isso nos faz sentir muitas vezes solitários e até mesmo insignificantes diante desse Big Data.
Talvez esteja na hora de começarmos a pensar e criar tecnologias capazes de conectar coletivos e não apenas indivíduos; tecnologias realmente capazes de proporcionar experiências humanas de ultraconectividade que aproximem cada vez mais as pessoas. Uma IoH (Internet of Human), mais subjetiva e menos coisificada, afinal conectar seres humanos é muito mais complexo do que conectar objetos.
Com o amadurecimento e a escalabilidade de tecnologias como 5G, realidade aumentada, blockchain, computação quântica e com os avanços científicos da geração e armazenamento de energia por fontes renováveis, acredito que teremos cada vez mais condições de avançar nesse sentido de tecnologias coletivas e humanas.
Eu não tenho respostas prontas para expressar o grau de singularidade das próximas décadas, mas tenho convicção que haverão muitas mudanças e que grande parte delas já estão ocorrendo nesse exato momento. Não digo mudanças residuais de aprimoramento das tecnologias já existentes, mas percebo que uma janela está se abrindo para a criação de novas tecnologias.
Para muitos, inovação se resume apenas a reinventar a roda e tudo não passa de um eterno crtl+c/crtl+v aprimorado. Ao contrário, prefiro acreditar que a humanidade é criativa o bastante para se superar, inventando novas tecnologias e cocriando coisas antes nunca pensadas, afinal ainda não conhecemos todo o potencial da mente humana, menos ainda da nossa consciência coletiva.
*Lucas Prado é cientista de dados, embaixador de inovações cívicas da Open Knowledge Brasil e cofounder da Meritocracity.
Fonte: Whow